“O suicida não quer morrer, ele simplesmente quer cessar a dor que sente” (Fotos: Lucas C. Ribeiro/Arquivo Sinpol-DF)

Ângela Santos*

Sinto profundamente a morte do colega Espedito. Não o conhecia tão próximo, pois trabalhamos juntos por poucos tempo, mas imagino o tamanho da dor que ele sentia.

O suicida não é um covarde, nem egoísta. O suicida é apenas uma pessoa com uma dor psíquica insuportável, ao ponto de tirar a própria vida. Na verdade, o suicida não quer morrer. Ele, simplesmente, quer cessar a dor que sente.

Vejo uma grande responsabilidade da Polícia nas mortes de policiais por suicídio. Nós policiais, geralmente, escolhemos a nossa profissão imbuídos de uma grande paixão e, não raras vezes, de um sonho de criança. Ralamos pra caramba, estudamos dias e noites a fio, deixando os prazeres cotidianos de lado até que realizemos o nosso sonho. Tomamos posse acreditando que seremos heróis e heroínas.

Na realidade, primeiro, vem a empolgação do trabalho, ocasionando o afastamento da família pela nossa falta de rotina; depois, vem o fato de termos que aprender a transitar na linha sutil entre a legalidade e a ilegalidade, com campanas, informantes, infiltrações; depois, passamos a lidar com as mazelas da sociedade, com a escassez de servidores, com a banalidade que se tornaram as execuções penais.

E nos deparamos com uma decepcionante realidade: não somos heróis nem heroínas!

O número escasso de policiais não é proporcional ao aumento da criminalidade. Passamos trabalhar muito e “enxugar gelo”, escolhendo qual crime investigar. Natural a desmotivação no trabalho, sem ferramentas interessantes e modernas de estímulo. Logo, vem a dor psíquica em forma de depressão, desânimo no trabalho e aquele policial que entrou aqui para realizar um sonho de criança, passa a não mais conseguir fazer o seu trabalho a contento, quando se depara com o desprestígio dos policiais, não mais admirados nem pelas crianças, que já preferem os bandidos em suas brincadeiras de Polícia e Ladrão.

Ninguém lhe pergunta o que está acontecendo. O doente policial, agora, passa a ser um incômodo, um peso. O que fazer com ele? Ah, vamos fazer umas “triangulações”, pois precisa fortalecer a equipe com profissionais mais comprometidos e a unidade precisa mostrar serviço. Pra quê e pra quem? E, assim, segue esse círculo vicioso. Ou então aquele policial, que sempre foi operacional, depois de uma doença, é jogado em uma função da qual não tem interesse algum. Até encaminham-no para a Policlínica. “Ah, vamos suspender a arma dele, pois ele pode se matar.” Sem saber, a equipe psiquiátrica e médica, que muitas vezes não é policial, já está matando esse policial quando lhe tira a sua arma, o seu instrumento de defesa da paz social, que ele jurou defender como Atalaia Eterno.

A retirada da arma já matou o seu brio, a sua esperança, a sua autoestima. E a equipe se esquece de que o policial pode se matar com qualquer arma, até com a sua de “backup”, ou enforcado numa corda, como fez o meu queridíssimo Miguelzinho.

Sem falar nas punições e nas chacotas sofridas por policiais que entram em licença com problemas psiquiátricos, pois o rótulo logo lhe recai: “É preguiçoso!”, independentemente de todo esforço desempenhado nos seus árduos anos na Polícia. Somos obrigados a ouvir dos próprios chefes desses sofridos policiais que eles não tiveram outra alternativa para cessar a sua dor, a não ser a morte, que eles eram ótimos policiais.

Ah, de verdade, me poupe tanta hipocrisia! Quando uma pessoa entra em depressão, com um pouco de sensibilidade já se percebe a doença quando ela perde o interesse pelo trabalho. Depois, vem o desinteresse pelos prazeres cotidianos, pela família, até o ponto de perder o amor pela própria vida.

Sou uma sobrevivente desse doloroso processo. Em 2011, já com doze anos de polícia, com trabalhos dignos de elogios, depois de ter ocupado alguns cargos de chefia – quando havia quatro anos que eu estava trabalhando na mediocridade , depois de um olhar atencioso do meu chefe, o queridíssimo doutor Marco Antônio, descobri que estava agindo inconscientemente daquela forma após um convite negado pelo DPC para trabalhar na DECO, cujo argumento era: “A senhora é uma excelente delegada e o DPC não pode perdê-la.” O que o meu inconsciente entendeu? “Ângela, você está sendo punida por ser boa profissional. Passe a trabalhar mal, vai dar na mesma.”

Graças a Deus, encontrei o meu anjo da guarda, não é maçante repetir, o doutor Marco Antônio, que me mostrou como eu era capaz de fazer com maestria o trabalho rotineiro.

Então, voltei a trabalhar com prazer nas investigações. Logo depois, tive uma ascensão profissional com vários cargos de chefia, até quando o meu corpo não aguentou mais e, novamente, adoeci como consequência de tanto trabalho, noites a fio de plantão – inclusive na gravidez – e de ter sido assediada por chefes para assumir um cargo de relevância, quando todos os delegados tinham entregado os nossos cargos e assinado um compromisso de não aceitar nenhum outro.

A ética me saiu muito cara! O que aconteceu? Perdi a chefia, mesmo tendo voltado da licença sem a autorização do médico, pois acreditava que a minha cura era o meu trabalho, fazendo aquilo que eu mais sei fazer no mundo: ser Polícia. Eu fui exonerada mesmo tendo coordenado, nessa chefia, várias operações policiais com divulgação em âmbito nacional. E assim é a Polícia. Não se enganem. Esse ciclo se repete com vários e vários colegas.

Não sei o que se passava com o colega Espedito, mas, com certeza, ele passava por uma dor psíquica sem precedentes. Os meus mais estimados sentimentos aos familiares e aos amigos. Que a Espiritualidade Superior receba o nosso colega Espedito Costa com carinho, curando suas feridas e o orientando para o caminho da luz, da paz e da tranquilidade espiritual.

Desejo, do fundo do meu coração, que a Polícia, instituição que escolhi por amor, olhe por nós, com políticas sérias de prevenção à depressão; ao suicídio.

*Delegada de Polícia há mais de 19 anos, lotada na Central de Flagrantes da 24ª DP

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