Do Metrópoles

Pagamentos robustos ao funcionalismo ainda oneram empresas estatais, corporações da segurança e outros órgãos públicos do Distrito Federal. Em fevereiro, 583 servidores ativos e aposentados receberam contracheques superiores a R$ 30,4 mil, teto estipulado pela Constituição para a capital, que equivale à remuneração de um desembargador do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT).

Tudo por conta de liminares na Justiça, que impedem a adequação dos valores com o chamado “abate-teto”, e, especialmente, por gratificações que encorpam os vencimentos. Ou seja, embora as cifras fiquem acima do previsto na Constituição, não há ilegalidade nos pagamentos. Ainda assim, essa realidade está a um abismo de distância da situação vivida pela maioria dos trabalhadores da iniciativa privada.

Levantamento feito pelo Metrópoles, com dados fornecidos pelo Portal da Transparência do DF, mostra que o ex-auditor fiscal da Receita do DF Fernando Carlos Tejera Campos do Amaral, aposentado em março de 2016, embolsou R$ 304.993,61 unicamente em licença-prêmio. Ele encabeça a lista dos servidores que, no quinto dia útil de março, viram cifras altíssimas engordarem o saldo da conta bancária.

Em segundo lugar no ranking, está o coronel aposentado da Polícia Militar do DF (PMDF) Francisco Eronildo Feitosa Rodrigues, com R$ 290.349,65. Desse montante, R$ 88.592,15 são descritos como remuneração básica do militar, que chegou a ser preso devido à suspeita de corrupção e, depois, foi aposentado pela corporação. Outros R$ 200.748,54 constam como verbas eventuais, e R$ 3.512,10 referem-se a outros benefícios.

O valor é menor do que os R$ 539 mil divulgados anteriormente. Segundo a Controladoria-Geral do DF, a diferença de sistemas pode gerar divergências. Mas o fato é que, no contracheque de mais de meio milhão de reais, constava uma série de benefícios, como férias não usufruídas e indenização por outras licenças não gozadas.

Os militares recebem pelo Fundo Constitucional e os dados são extraídos do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape), gerido pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, o que nem sempre é reproduzido fielmente no Portal da Transparência, segundo o governo.

Para solucionar o problema, as forças de segurança do DF e a Controladoria estão em tratativas para compatibilização das informações. No caso específico do coronel Feitosa, identificou-se que de fato há um desacordo. Segundo o governo, a falha será corrigida.

Os campeões

Além do ex-auditor da Receita do DF Fernando Amaral e do coronel Feitosa, integra a lista dos contracheques campeões de fevereiro o coronel Hamilton Santos Esteves Junior, ex-comandante do Corpo de Bombeiros Militar do DF.

Em terceiro no ranking, o coronel recebeu, já descontados impostos, R$ 224.374,97. O valor se refere a R$ 136.185,90 em verbas eventuais, R$ 88.432,40 de remuneração básica e R$ 3.067,43 de outros benefícios. No último dia 6, o militar foi nomeado titular da Secretaria de Cidades.

O major da PMDF Aurino Benedito dos Santos foi o quarto mais bem remunerado em fevereiro. Dos R$ 224.346,59 creditados em sua conta, com os devidos descontos, R$ 87.220,54 foram de remuneração básica, outros R$ 3.133,94 em benefícios e R$ 136.080,08 de verbas eventuais.

Além dele, o também major da PMDF Lhano Lopes Portela de Melo teve salário de R$ 202.742,33. Foram R$ 86.906,34 de remuneração básica, R$ 3.166,06 de benefícios e R$ 115.735,68 de verbas eventuais.

Acima de R$ 100 mil

Além do quinteto mencionado acima, 54 funcionários e ex-servidores auferiram mais de R$ 100 mil no segundo mês do ano. Na PMDF, 85 profissionais ultrapassaram o teto. Na Polícia Civil, foram 19. Já na Companhia Energética de Brasília (CEB), também há exemplos: um engenheiro eletricista ganhou R$ 102.195,18.

Abaixo dos R$ 100 mil, mas ainda com valores altos, sobram casos. Na administração indireta, um advogado da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) teve computado, em seu contracheque, R$ 80.608,77; enquanto um agente administrativo da estatal recebeu R$ 46.974,85.

Por que os valores vêm tão altos?

Quase a totalidade dos casos de holerites turbinados ocorre em função do pagamento de benefícios, como licenças-prêmio não gozadas. É o caso de servidores que se aposentaram e agora estão recebendo variados tipos de gratificação.

A situação se repete, por exemplo, na Casa Civil do DF e nas secretarias de Fazenda, Agricultura, Educação, Criança, Território e Habitação; além do Departamento de Trânsito (Detran-DF), Departamento de Estradas de Rodagem do DF (DER-DF), Agência de Fiscalização (Agefis), Instituto Brasília Ambiental (Ibram), Instituto de Previdência dos Servidores do DF (Iprev) e Defensoria Pública, além dos órgãos já citados.

Entenda os termos

A Secretaria de Planejamento (Seplag) explica que a rubrica “remuneração básica” inclui “vencimentos básicos, abonos, adicionais (insalubridade, periculosidade, noturnos etc.), gratificações, incorporações, tempo de serviço e vantagens pessoais”. Isso explica o fato de os contracheques de alguns funcionários constarem no valor básico cifras acima de R$ 30,4 mi.

Benefícios, por sua vez, referem-se a auxílios, indenizações e ressarcimentos. Ademais, o recebimento pode incluir a comissão de conselheiros, serviço voluntário gratificado/horas extras, verbas judiciais e licença-prêmio.

Os descontos de folha referem-se ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e incidem sobre salário, 13° e férias, entre outros. Esses abatimentos são unificados para servidores com mais de um vínculo.

Os descontos de meses anteriores e a chamada “reposição de pagamento a maior” são acertos dos valores não descontados em períodos anteriores. Excetuam-se, nesse caso, as cifras classificadas como hora extra, teto redutor, IRPF, seguridade social e licença-prêmio. A explicação para cada item pode ser lida aqui.

Ainda segundo a Seplag, o abatimento incide sobre vencimentos; verbas de representação; parcela de equivalência; abonos; prêmios; adicionais; gratificações e vantagens (como gratificação por exercício e ajuda de custo para capacitação profissional); substituições; remuneração pelo exercício de cargo em comissão ou função comissionada; e valores pagos em atraso.

Não há incidência de teto sobre pagamento de licença-prêmio convertida em pecúnia. Por isso, em muitos casos, as cifras alcançam patamares astronômicos em determinados meses.

Apesar de chamarem a atenção, os 583 contracheques acima do teto correspondem a um percentual pequeno dentro do universo do funcionalismo distrital. Segundo o Portal da Transparência, há, sob o guarda-chuva do GDF, 184.396 mil servidores, sendo 122.443 ativos, 48.667 aposentados, 12.773 em situação de pensão e outros 513 em condições diversas.

Ainda de acordo com o site do governo, 66,6% são mulheres e 33,4% homens. A principal faixa etária é do grupo de 60 anos ou mais, com 34.155 do sexo feminino e 18.116, do masculino, nessa condição.

Chancela do setor público

Para o professor de administração e políticas públicas José Simões, do Ibmec-DF, há certa dose de conivência do setor público com esses pagamentos. “Algumas empresas foram criadas para acomodar nomeações e cargos políticos. Portanto, nascem com esse DNA. Assim, reduz-se o esforço em resolver os problemas, uma vez que envolvem padrinhos e alianças partidárias”, afirma.

“Os salários dessas empresas, maiores do que os praticados no mercado, seriam para atrair melhores executivos e adquirir mais eficiência. Ocorre que, muitas vezes, pagamos para ter nomeados políticos e a qualidade dos serviços prestados não atende aos anseios da sociedade”, José Simões, especialista em políticas públicas

O que dizem governo, empresas e corporações

O Metrópoles entrou em contato com todos os servidores citados na reportagem, por meio dos órgãos em que estão vinculados, sindicatos e advogados.

A Fazenda explicou que o montante pago a Fernando do Amaral “se refere à licença-prêmio convertida em pecúnia, nos termos previstos no art. 142 da Lei Complementar nº 840/2011“. A norma institui o regime jurídico dos servidores públicos civis da administração direta, autárquica e fundacional e dos órgãos relativamente autônomos do Distrito Federal.

Advogado do coronel da PM Eronildo Feitosa, Carlos Henrique Nora Teixeira disse que o cliente não iria se pronunciar sobre o tema. Afirmou, porém, que os valores recebidos “tratam-se de verbas indenizatórias e gratificações não percebidas durante os 30 anos de serviços prestados – algo similar, mas ainda assim abaixo ao que um empregado celetista bem remunerado receberia depois de rescindir um contrato de 30 anos de serviço”.

Ao comentar a situação do coronel Feitosa e dos majores Aurino dos Santos e Lhano de Melo, a PMDF explicou que os três policiais “receberam os benefícios na passagem para a inatividade (aposentadoria)”. Esses valores são pagos a título de gratificação e ocorrem uma única vez na carreira do militar. “Os benefícios acumulados, e que todo policial militar tem direito a receber quando ingressa na inatividade, são: ajuda de custo, licenças e férias vencidas e não gozadas por necessidade do serviço”.

O GDF afirma que no caso do coronel dos bombeiros Hamilton Esteves, o valor do holerite de fevereiro “se refere à indenização pela ida dele para a reserva, além de férias e licenças não gozadas”. Por meio de nota, o governo “reforça que todas as pecúnias estão seguindo o teto remuneratório e estritamente dentro da legislação vigente”.

Em relação aos demais servidores, “o Governo do Distrito Federal esclarece que está em vigor emenda à Lei Orgânica, proposta pelo Executivo, que estabelece teto remuneratório nas estatais e suas subsidiárias. Porém, neste momento, há decisões judiciais obtidas individualmente por entidades sindicais e funcionários que impedem a aplicação da lei em algumas empresas”.

É o caso da Caesb. Procurada pela reportagem, a companhia disse estar impossibilitada, por força de liminar judicial, de aplicar o abate-teto. A empresa diz que “recorreu e aguarda decisão do mérito”. Enquanto isso, 85 empregados da companhia tiveram provimentos acima do teto em fevereiro.

Como justificativa, o Metrô-DF informa que nenhum empregado da empresa recebe remuneração mensal acima do teto constitucional. Eventualmente, segundo a companhia, além do salário mensal, o funcionário pode receber antecipação ou adicional de férias, 13º salário e abono pecuniário.

Já a Codeplan afirma que aplica o limite, mas ganhos como adiantamento de 13º, de férias, um terço de férias (gratificação constitucional) e abono pecuniário não são computados para fins do abate-teto. Isso explica 14 empregados da empresa terem ultrapassado o salário de um desembargador do TJDFT no segundo mês do ano.

Em entendimento parecido com o da Codeplan, a CEB afirma que aplica o limite, mas alguns salários na estatal ultrapassam R$ 30,4 mil. No site da companhia, está disponível a composição das rubricas salariais de cada empregado, não constando, porém, descontos como Imposto de Renda, INSS e previdência privada. Segundo a instituição, essas informações constam nos contracheques dos funcionários.

Em nota, o BRB disse que não está praticando o teto remuneratório em relação aos servidores de carreira por força de liminar obtida pelo Sindicato dos Bancários de Brasília. O banco assegura também que está sendo utilizado o teto a servidores que não são de carreira.

No texto, a instituição complementa que, “em razão de ser uma decisão judicial, em processo que não trata de casos individuais, não resta ao banco alternativa que não seja o seu cumprimento. Vale ressaltar que o BRB, além de contestar a ação trabalhista, noticiou o fato à Procuradoria-Geral do Distrito Federal”.

A Novacap, por sua vez, afirmou que nenhum funcionário da empresa se enquadra nessa situação. A empresa pública destaca que “aplica o código redutor remuneratório parametrizado pela Secretaria de Planejamento sobre os salários que, por ventura, venham a ultrapassar o teto”.

Em texto enviado à reportagem, a Secretaria de Saúde justifica que “o teto remuneratório vem sendo adotado, com exceção das categorias que tiveram ações judiciais favoráveis para a não aplicação do limite quando em acumulação legal de cargos”. Nesses casos, salienta a pasta, “o teto remuneratório é feito isoladamente para cada vínculo (matrícula), desconsiderando o somatório no CPF”.

A Secretaria de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude (Secriança) informa que a cifra referida pela reportagem diz respeito ao acerto de contas de um servidor aposentado. “O valor ultrapassa o teto, uma vez que é preciso fazer o pagamento de gratificações natalícias, férias, férias atrasadas, entre outros benefícios, além do salário do servidor”, diz, em nota.

A Secretaria de Educação informou que “não tem servidores na ativa recebendo salário acima do teto constitucional”.

A reportagem ainda perguntou a todos os citados o percentual do orçamento gasto para pagar funcionários. O Metrô-DF disse que, em 2017, o número chegou a 31% do total. A folha de pagamento da Saúde utiliza por volta de 70% do valor dos recursos anuais. Em fevereiro, o custo da folha de pagamento com servidores ativos da pasta foi de R$ 357.696.262,46. Os demais órgãos não responderam ao questionamento.

Histórico legal e judicial

A Proposta de Emenda à Lei Orgânica nº 67 (Pelo n° 67), que breca a farra dos supersalários no serviço público local, foi aprovada em maio do ano passado. Na ocasião, os distritais estabeleceram prazo de até 90 dias para que as estatais aplicassem o teto. Os funcionários, no entanto, vêm conseguindo liminares que impedem a aplicação da norma.

A medida foi encaminhada pelo Executivo local e aprovada pela Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) após o mal-estar causado pela divulgação, por parte da imprensa, dos generosos vencimentos. No começo de 2017, o Metrópoles mostrou diversos exemplos. Na Caesb, houve vencimento que ultrapassou R$ 90 mil em janeiro do ano passado.

Diante da chuva de liminares, em fevereiro deste ano, o GDF ajuizou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 52 no Supremo Tribunal Federal (STF). Por meio dela, o GDF tenta fazer valer a lei do teto salarial para todas as estatais, inclusive as que não recebem repasses do orçamento do Tesouro local para custeio com pagamento de pessoal. A ação tem como relator o ministro Celso de Mello e, atualmente, aguarda análise do magistrado.

“Entendo que o ideal seria o STF dizer o que pode e o que não pode ser pago. Essa desorganização acaba afetando, de forma preocupante, as contas das empresas públicas do DF”, José Matias-Pereira, economista e pós-doutor em administração

Aliada do governo nessa luta, a Procuradoria-Geral do Distrito Federal (PGDF) explica que não é possível estimar a data do julgamento da ADC nº 52. Na petição inicial, o órgão solicitou que o caso fosse analisado ainda durante o recesso do Judiciário, mas a presidente do STF, Cármen Lúcia, negou por não considerar o tema urgente. A PGDF esclarece ainda que a aplicação do teto constitucional independe de uma vitória do governo no STF.

Isso ocorre porque as empresas vão ser obrigadas a cortar vencimentos dos empregados, caso as liminares aplicadas por tribunais inferiores caírem. A ADC ajuizada ao STF, no entanto, é a cartada mais poderosa, uma vez que seria o martelo batido pela Suprema Corte.

O tema também é discutido no Senado. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) é a responsável pela votação da proposta de emenda constitucional que estende o teto do serviço público a empresas estatais. A PEC nº 58/2016 aguarda a entrada na pauta da comissão, com relatório do senador Acir Gurgacz (PDT-RO). O voto dele é favorável à proposta.

Paralelamente às ações do governo e vedadas por liminares, algumas empresas lutam para encontrar uma alternativa e, assim, diminuir o gasto com pessoal e aumentar o faturamento. A Caesb, por exemplo, planeja implantar seu Programa de Demissão Voluntária (PDV). A Terracap também lançou, no ano passado, o desligamento incentivado. Com as contas combalidas, a agência diz que tem se esforçado para conter as despesas.

 

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