Do Estadão

Desde sempre a previdência social é considerada a vilã das contas públicas, e por isso precisaria ser reformada. Governo, bancos, economistas, imprensa, todos batem diariamente nesta mesma tecla. Vamos conversar um pouquinho sobre isso?

Bem, o primeiro ponto a se abordar é que a previdência passou a ser parte das contas públicas na década de 1960. Antes disso, os trabalhadores eram vinculados a institutos previdenciários autônomos (os IAPs), que geriam as contribuições e os benefícios, e eram altamente superavitários. O governo militar, ao ver aquele superávit todo, resolve criar um único instituto, público, e fundiu todos os IAPs no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Aí começou o problema: todo o superávit dos IAPs se transformou em déficit, pois os governantes desviaram os recursos da previdência para outras áreas.

A Constituição Cidadã em 1988 reorganiza esta situação: reúne previdência social, assistência social e saúde em um único Sistema de Seguridade Social (art. 194), com um orçamento próprio (art. 165), financiado por tributos que foram direcionados unicamente para este fim (art. 195). Assim, o dinheiro fica devidamente protegido dos olhos dos governantes. É necessário ressaltar que a previdência social aqui citada é apenas a previdência dos trabalhadores da iniciativa privada; os servidores públicos e os militares não estão incluídos neste sistema, até porque naquele momento eles não contribuíam para a previdência: apenas prestavam seus serviços à população e, ao final, eram recompensados por aposentadorias (ou reformas, no caso dos militares) com a mesma remuneração da ativa – ou, em alguns casos, com remuneração superior à que recebiam na ativa. Portanto, seja na ativa ou na aposentadoria, eles são despesa pública, vinculada ao orçamento fiscal da União, que por sua vez é financiado por toda a população. É justo: estas pessoas dedicaram suas vidas ao serviço público, atendendo necessidades de toda a população; nós os sustentamos com nossos tributos e, quando esgota sua capacidade de trabalho, nós os sustentamos também na aposentadoria (ou reserva/reforma).

Dez anos depois, em 1998, os servidores públicos são chamados a contribuir. O Estado brasileiro entendeu que se os trabalhadores da iniciativa privada precisam contribuir para se aposentar, os servidores públicos também precisam. O simples fato de, agora, eles também serem contribuintes, não os coloca no Sistema de Seguridade Social: eles continuam sendo uma despesa pública, vinculada ao orçamento fiscal da União, com a diferença que, agora, também ajudam financiar suas aposentadorias, pois passaram a contribuir.

Quando olhamos os orçamentos de forma técnica, vemos que o orçamento da seguridade social sempre foi superavitário. E, se porventura nos últimos anos ele teve algum déficit, os superávits passados cobrem este déficit com tranquilidade. Já as contribuições dos servidores públicos não são suficientes para pagar suas aposentadorias, pois não há um orçamento amplo como o da seguridade social. Logo, a conta realmente não fecha. E nem deve fechar, pois como já vimos, previdência de servidores é despesa da União, junto com todas as demais despesas (forças armadas, poder judiciário, estrutura ministerial, relações exteriores, etc).

Porém, o governo tem apresentado uma conta diferente. Ele coloca, à força, os servidores públicos no mesmo orçamento da seguridade, de forma a deixar este orçamento negativo. É óbvio: despesas altas (aposentadorias dos servidores) e receitas baixas (contribuições dos servidores), logicamente vai gerar falta de dinheiro. Desta forma, mostra ao mercado que o problema é a previdência como um todo, e não demonstra que o problema (se é que se pode chamar de problema) está nas aposentadorias dos servidores.

O fato real é que, ainda que se altere as aposentadorias futuras, os benefícios concedidos atualmente não podem ser alterados, pois as pessoas têm direito adquirido. E, no caso dos servidores, continua faltando dinheiro para bancar os benefícios. Além disso, as alterações que estão sendo propostas só mexem nas aposentadorias, mas a maioria dos benefícios pagos não são aposentadorias: são benefícios por incapacidade, causados por acidentes ou enfermidades. E uma reforma não fará as pessoas adoecerem menos, ou se acidentarem menos. Logo, o problema continuará existindo. Reformar apenas o direito aos benefícios não será suficiente para deixar a conta positiva.

Portanto, não há como falar em reforma sem falar em aumento de tributos. Não na previdência dos trabalhadores da iniciativa privada, que tem um orçamento equilibrado, mas sim na previdência dos servidores. Só aumentando tributos conseguiremos manter benefícios – ainda que efetuadas reformas.

Como na economia doméstica, as únicas formas de se equilibrar uma conta negativa é arrecadando mais ou gastando menos. E a forma de gastar menos não é mexendo em algo futuro, como previdência, mas sim reduzindo gastos hoje. Enquanto não se reduzir o tamanho da estrutura estatal, qualquer reforma que se faça será insuficiente para equilibrar as contas públicas. Logo, quem insiste em reforma da previdência sem reduzir o tamanho do Estado está, indiretamente, concordando com o aumento da carga tributária. Será que é isso que eu necessito?

*Emerson Costa Lemes, tesoureiro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP)

 

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