Matéria publicada na edição 1958 da ISTOÉ, de 9 de maio de 2007

A Justiça no banco dos réus 

      Em todo o País, existem mais de 600 investigações envolvendo falcatruas de juízes. Poucos sã opunidos. Muitos deles, mesmo afastados,continuam a receber salários

Por Rodrigo Rangel

      A contar pelo número de investigações que, muitas vezes sigilosamente, ocorrem em diversos órgãos, tudo indica que o País está próximo de conhecer alguns dutos que arrastam lama pelo submundo do Judiciário. Em Brasília, era noite da quinta-feira 3 quando os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) chancelaram o pedido de afastamento do colega Paulo Medina, acusado de ligação com a máfia dos bingos. Os casos que aparecem, entretanto, estão longe de refletir o que realmente acontece nas sombras de nossos tribunais. Nas duas últimas semanas, ISTOÉ coletou dados sobre processos destinados a investigar desvios de conduta de juízes. Com base em números repassados pelas próprias cortes, constata-se que há em andamento nada menos que 504 procedimentos, entre sindicâncias, processos disciplinares e ações criminais. Somadas representações e reclamações que envolvem casos mais graves, a conta passa de 600.

      Os casos em apuração têm origem em desvios dos mais diversos. Há processos contra juízes por retardarem o andamento de processos. Também há por favorecerem uma das partes. Mas o mais grave é que, invariavelmente, há suspeitas de venda de sentenças e corrupção. No mesmo STJ onde até dias atrás despachava o ministro Medina, tramitam 105 investigações criminais contra desembargadores estaduais, federais e da Justiça trabalhista. Dessas, 24 já se transformaram em ações penais, inclusive com afastamento dos investigados. Caso do desembargador Dirceu de Almeida Soares, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, instância superior da Justiça Federal nos três Estados do Sul do País. Soares é acusado de formação de quadrilha, estelionato e advocacia administrativa. De acordo com a denúncia levada ao tribunal, ele pressionava colegas para decidirem a favor de advogados amigos, dentre eles o lobista Roberto Bertholdo, também investigado por atuar no mercado de sentenças. Agia inclusive no próprio STJ, conforme ISTOÉ revelou na sua edição de 19 de julho de 2006, num processo que outra vez envolve Medina e outros juízes dessa corte. No Supremo Tribunal Federal, ainda sob o manto do sigilo, outros ministros podem estar sendo investigados neste momento. Indagado na quinta-feira 3 se está envolvido em alguma ação contra outros ministros de tribunais superiores, atribuição que só compete a ele, o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, não negou: “A investigação que tem hoje e sobre a qual eu posso falar é a que já está pública.”

      O levantamento feito por ISTOÉ esbarrou em algumas resistências que demonstram como a transparência ainda não é termo comum à Justiça como um todo. Dentre os 27 tribunais estaduais, oito simplesmente não responderam. O mesmo aconteceu com o TRF da 3ª Região, sediado em São Paulo. Mas nem isso é suficiente para tirar a eloqüência dos números (leia quadro à pág. 33). Nos 19 tribunais de Justiça estaduais que enviaram os dados, há 375 procedimentos abertos para investigar juízes. Na Bahia, por exemplo, há 26 processos. Em Pernambuco, são 49 inquéritos e ações disciplinares contra 17 magistrados. Nesse bolo, há desde acusados de receber suborno em troca de decisões até suspeitos de sumir com os processos que deveriam julgar. No Judiciário pernambucano, seis juízes estão afastados. No Judiciário estadual paulista, são 15 processos contra juízes de primeira instância. Dois deles estão afastados. De 2005 para cá, quatro magistrados foram punidos pelo TJ paulista.

      Dos cinco tribunais regionais federais, só o da 3ª Região, sediado em São Paulo, não respondeu. Nos demais, estão em apuração 23 casos de desvio de conduta. No tribunal do Rio, que também abrange o Espírito Santo, são cinco processos. Três já resultaram em afastamento de juízes federais de primeira instância subordinados à Corte. No TRF-1, em Brasília, quatro processos miram três juízes. Quase sempre, os nomes dos investigados são mantidos em sigilo. Os tribunais alegam segredo de Justiça. “A situação do Judiciário hoje é muito ruim, mas o fato de os casos de corrupção aparecerem já é um ganho, porque isso ajuda a diminuir a sensação de impunidade”, avalia a cientista política Maria Tereza Sadek, da USP.

      Se por um lado os casos de corrupção togada têm aparecido mais, por outro ainda é preciso fazer ajustes. No Brasil, a lei até prevê a demissão como pena para juiz condenado. Mas, na prática, magistrados costumam ser punidos no máximo com aposentadoria compulsória e continuam ganhando os bons salários. Defenestrado do STJ após suspeita de favorecer narcotraficantes, o ex-ministro Vicente Leal continuou a receber o R$ 23 mil por mês e está advogando. Sua banca, aliás, atua no próprio tribunal do qual um dia ele fez parte. O próprio Paulo Medina, que acaba de se afastar, seguirá ganhando salário de ministro. Há mais problemas. Há dois anos, após intenso debate sobre a necessidade de controle externo do Judiciário, criou-se o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Hoje, o CNJ é um órgão corporativo e o ritmo das punições que tem aplicado ainda está longe daquele que se imaginava lá atrás. “Muita coisa que se esperava do conselho nós continuamos esperando”, critica Sérgio Renault, secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça à época em que o controle externo foi aprovado. Um detalhe prosaico talvez sirva de exemplo: ISTOÉ pediu ao CNJ números atualizados sobre sua atuação. Duas semanas se passaram e, até o fechamento desta edição, os dados não chegaram. No fundo, o que há é um risco grande de o conselho se mostrar inócuo. E isso é tudo o que desejam os corporativistas que antes gritavam contra o controle externo – algo que a realidade mostra ser cada vez mais necessário.

A defesa do corregedor

      No domingo 29, o ministro Antônio de Pádua Ribeiro, corregedor do Conselho Nacional de Justiça, respondeu ao teor de gravações trazidas a público na última edição de ISTOÉ e o STJ emitiu nota em apoio ao ministro. Nas escutas, o então chefe de gabinete de Pádua, Cícero de Sousa, tratava do futuro de um processo que estava a cargo do ministro. Do outro lado da linha, um homem suspeito de negociar sentenças, Hélio Ortiz. “Trata-se de conversas mafiosas, de criminosos que discutiam uma sentença que eu não proferi. Essas denúncias não têm nenhuma consistência”, disse o ministro. Pádua Ribeiro assegura que tomou as providências necessárias tão logo soube das gravações: afastou o funcionário, que foi punido administrativamente, com suspensão temporária. Nas gravações, Sousa e Ortiz envolviam na trama o nome do genro do ministro, o advogado Gabriel Portella, que até admite ter sido procurado pela dupla, mas nega que tenha participado de qualquer tentativa de facilitar o andamento do processo. “Acabei sendo usado naquela situação”, afirma Portella. “E as mesmas gravações mostram que não participei de nenhum esquema.” O caso está sob investigação da Procuradoria da República em Brasília.

O lucro das sentenças

      Conheça Luizinho Cai-Cai, umfabricante de cigarros que ficoumilionário sem pagar impostose faturou com decisões compradasna Justiça

Por Hugo Marques e Hugo Studart

      A Polícia Federal descortinou um esquema de venda de sentenças na Justiça e prendeu dois desembargadores e um juiz ao deflagrar a Operação Hurricane. Aos poucos, começam a surgir as empresas acusadas de comprar as decisões judiciais. Uma delas é a fábrica de cigarros American Virginia, que pertence ao empresário Luiz Antônio Duarte Ferreira, 46 anos. Ele é também presidente do Marília Atlético Clube. Ex-vendedor de distribuidora de cigarros, Duarte Ferreira construiu um império econômico em sete anos. A American Virginia é a terceira maior fábrica do gênero no País, com faturamento anual de quase meio bilhão de reais. Fabrica as marcas San Marino, Seleta, Oscar, Indy e West. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional descobriu que grande parte da riqueza levantada pela fábrica provém da sonegação de impostos. Duarte Ferreira é dono de uma dívida de R$ 1,42 bilhão. É exatamente o orçamento anual do Ministério da Justiça. “Esse bilhão nós nunca vamos pagar”, avisa o sócio do milionário, José Luiz Lourenço, que falou com ISTOÉ em nome da American Virginia em novembro de 2006. “Estamos empurrando com a barriga.”

      A American Virginia é alvo da maior investigação já realizada pelo governo. A Receita Federal cancelou seu registro de fabricante de cigarros em novembro de 2005. Por duas vezes, ela foi fechada e reabriu as portas. Esta semana, suas unidades em Duque de Caxias (RJ) e em Belém (PA) foram cerradas por ordem judicial pela terceira vez. Não sem motivo. A American Virginia não paga IPI sobre os cigarros industrializados, de 46 centavos por maço. É a maior sonegadora do setor e responde por 36% de todas as dívidas da indústria de tabaco do Brasil. Sua fatia no mercado é de 8%, o que significa R$ 480 milhões de faturamento anual. Em dezembro do ano passado, já respondia a mais de 140 processos por sonegação fiscal. A lista tem autos de infração, cobranças finais e até confissões de dívida. Em uma decisão, o desembargador José Eduardo Carreira Alvim, do Tribunal Regional da 2ª Região, preso pela Hurricane, concedeu liminar em ação cautelar da empresa para “atribuir efeito suspensivo a recurso especial futuro”.

      Além dos cigarros, Duarte Ferreira expande os negócios para outros ramos. Investiu quase R$ 14 milhões em fazendas em Lupércio (SP) e em Porto dos Gaúchos. Em Marília (SP), é dono da American Sport e atua na compra e venda de jogadores. Na cidade, Luizinho Cai-Cai, como é conhecido, recebeu o título de cidadão benemérito da Câmara de Vereadores. O negócio de cigarros começou em 1995, com dez funcionários. Sete anos depois, tinha 550 funcionários diretos e quase 90 mil clientes no varejo.

      A empresa LDF Participações é dona de 85% da American Virginia. Duarte Ferreira tem 99% da LDF. “Ele é um investidor e eu administro”, afirma Lourenço. Com apenas 1% da LDF, é Lourenço quem assina as alterações de contrato social da companhia de cigarros. Ele recebe salário mensal de R$ 4,5 mil mensais e nega ser laranja da empresa. “Um laranja que dá as caras, que dá entrevista?”, pergunta Lourenço. Mas ele desafia a Receita Federal a achar um dono de fábrica de cigarro no Brasil. “É tudo laranja mesmo!”

      Não é de hoje que o empresário está na mira das autoridades. Em 2004, a CPI da Pirataria indiciou Duarte Ferreira por crime contra a ordem tributária. Além de ilegal e imoral, conquistar mercados sem pagar impostos é praticar concorrência predatória. Nesse ponto, a American Virginia não poupa esforços para ganhar dinheiro. Seus negócios transcendem as fronteiras do País.

      A empresa é a verdadeira dona da La Soberana de Tabacos, no Paraguai. Mais de 60% da produção de cigarros dessa fábrica é escoada para os camelôs do Brasil, os maiores concorrentes informais da indústria de tabaco. A metade da La Soberana pertence a Joaquim José de La Torre Aranda, diretor de futebol do Marília. Documento do Ministério da Fazenda do Paraguai mostra que a La Soberana está registrada nos nomes de Aranda e de Alexandre Galvão Leite, ex-funcionário da American Virginia. José Maria Gelsi, segundo-secretário do Marília e advogado de Duarte Ferreira, é dono de 30% da Tabacalera Central, também no Paraguai.