Do Metrópoles

Em 2017, apenas 24 mulheres abortaram legalmente no Distrito Federal. Uma por risco de morte materna e as outras 23 por terem engravidado de estupradores. O procedimento está previsto em lei se o feto for anencéfalo, se houver risco à vida da gestante e se a gravidez tiver sido originada de violência sexual – o último desde 1940.

O número de estupros no Distrito Federal aumentou em 32,4%. De acordo com a Secretaria da Segurança Pública e da Paz Social (SSP), foram registradas 667 ocorrências em 2016, contra 883 no ano passado.

Um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2011, estima que 7% das vítimas de estupro engravidam. No ano passado, 65 mulheres do Distrito Federal procuraram o Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL). Dessas, 23 tiveram resposta positiva e concluíram o aborto. Dois casos eram com meninas menores de 14 anos.

O PIGL funciona exclusivamente no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), mas o DF conta com 19 unidades do Programa de Pesquisa, Assistência e Vigilância à Violência (PAV), todos batizados com nomes de flores (confira os endereços aqui). Os espaços foram criados para ser o primeiro local a receber uma vítima de estupro.

“Elas chegam aqui e falamos sobre as três opções existentes: ficar com a criança, entregá-la para a adoção ou interromper a gravidez. Não tem a mais fácil, não tem a certa, não tem a errada”, explica Fernanda Jota, coordenadora do PIGL e chefe do Núcleo de Prevenção e Atenção às Situações de Violência (Nupav) da Região de Saúde Centro-Sul.

A vítima pode procurar o hospital de segunda a sexta-feira, no horário comercial. Ela será acolhida por um psicólogo ou um assistente social. Não precisa marcar hora nem levar encaminhamento. Se for sábado ou domingo, os funcionários pedem para ela voltar depois. Mas, na porta, existe o telefone e o e-mail do programa para facilitar o acesso fora do horário comercial.

Todo o atendimento está previsto na norma técnica do Ministério da Saúde. A vítima passa por três entrevistas com a psicóloga, uma com a assistente social, uma avalição médica, além de uma ecografia realizada dentro do hospital. Todo o processo dura de 10 a 15 dias.

Após as entrevistas, a equipe se reúne para deliberar sobre o pleito da paciente. Juntam as informações, os exames e avaliam se a gravidez foi gerada no dia alegado pela vítima. Se ela estiver bem psicologicamente, os profissionais dão o resultado. Se não, continuam com os atendimentos.

“As pessoas têm uma falsa ideia de que as mulheres chegam aqui muito convictas do aborto. Mas, na verdade, elas estão com muitas dúvidas. Existe um misto de sentimentos muito grande, como, por exemplo, a sensação de que o bebê também tem um pedaço dela.” – Fernanda Jota.

Se a gravidez tiver menos de 12 semanas, o procedimento aplicado se chama Aspiração Manual Intra-Uterina. Feito no bloco cirúrgico com sedação, a paciente faz de manhã e, via de regra, no final do dia recebe alta. Cerca de 15 dias depois ela retorna para se consultar com os profissionais, fazer nova ecografia, avaliação psicológica e nova entrevista com o serviço social.

Se ela tiver mais de 12 semanas, vai fazer a indução farmacológica. Nesse caso, existe um protocolo de horário. Os médicos dão o remédio repetidamente em intervalos de horas para a paciente até que aconteça a expulsão total do feto – o que ocorre, geralmente, em três dias.

Hoje, a equipe do programa conta com duas psicólogas, uma assistente social e três ginecologistas obstetra.

Tabu

O assunto ainda é tabu na sociedade brasileira. O preconceito e o julgamento de familiares, servidores das delegacias e até profissionais da saúde deixam essa mulher, que já está fragilizada, em uma situação ainda mais difícil e traumatizante.

Em conversa com o Metrópoles, Fernanda Jota fala sobre o trabalho dos profissionais da equipe responsável por essas vítimas e dá sua opinião sobre o momento que vivemos e as possíveis soluções para a violência sexual.

“Uma mulher que não escolheu ter aquela relação sexual, não permitiu aquilo, ela foi violentada e atacada no mais profundo da sua dignidade. ” – Fernanda Jota

Por que só o HMIB realiza os abortos legais no Distrito Federal?
Existe a Resolução nº 1, de 1996, do Conselho de Saúde do DF, elegendo o HMIB como o local indicado para abrigar esse programa. Pela particularidade do hospital ter o costume de atender mulheres, gestantes e crianças. É a unidade onde a gente encontra o maior número de profissionais preparados para esse tipo de demanda.

A mulher já está fragilizada e constrangida, não seria mais fácil poder realizar o procedimento em qualquer unidade de saúde?
Construir uma equipe disposta a trabalhar com esse programa é um problema nacional. No HMIB, por exemplo, não temos enfermeiro na equipe. Não encontramos um profissional disposto a estar conosco. Eles alegam objeção de consciência com a temática. Manter essa equipe é um grande desafio, acho muito difícil a gente conseguir construir vários grupos de trabalho sobre o tema.

Por isso, durante as sensibilizações e os treinamentos com as equipes de outras unidades de saúde, sempre conversamos com os profissionais para encaminhar imediatamente a mulher grávida de uma violência para cá. E evitar perguntas para não fazer a paciente sofrer com a revitimização. Ou seja, fazer com que a mulher conte a história dela várias vezes e assim atualizar os afetos dela em relação ao trauma várias vezes.

Em 2018 já teve alguma mulher procurando vocês?
Sempre tem gente batendo na nossa porta. Os dados de 2015 para 2016 deram uma virada: saltou de 33 para 62 os atendimentos, um aumento de 100%. Tínhamos uma média de 50% a 55% de abortamentos. Mas, em 2017, vimos uma redução de 36% dos casos.

O motivo? Ano passado fizemos uma divulgação massiva do programa. Recebemos de tudo. Desde mulheres que não se encaixavam nos critérios da lei, mas queriam abortar, até aquelas com idade gestacional superavançada. Estamos atribuindo a redução no número de abortamentos por essa mudança nas características dos casos que nos procuraram.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 7% dos casos a vítima de estupro engravida. Em 2017, foram 883 casos de estupro – o que daria 62 mulheres grávidas –, mas só 23 abortos legais realizados. Acha que números de abortos legais são tão baixos por falta de informação? Sobre o que fazer, quem procurar, como fazer?

Na verdade, a gente tem um número alto de procura. Recebemos 65 registros, número maior que o dado do Ipea. Não foram realizados todos os abortos porque existem as negativas. Mas, eu não tenho dúvida de que há falta informação.

A gente ainda tem muitos profissionais alegando objeção de consciência. Muitas mulheres chegam para serem atendidas em uma delegacia ou em um serviço de saúde e encontram profissionais em posse da informação, mas que escolhem não repassar.

Profissionais da saúde podem usar princípios morais e religiosos para não ajudar no aborto. A objeção da consciência é protegida por lei. Mas o profissional precisa garantir a profilaxia e o acesso a outro hospital. Você acha que isso funciona no DF? Porque existem pessoas que vão constranger essa mulher, falar que é errado fazer o aborto…
O código de ética dos médicos é muito interessante. O profissional tem o direito de não atender questões que ferem seus conceitos morais e religiosos, mas ele também pode ser punido se provocar qualquer dano para a paciente por conta de negligência ou omissão. Logo, para alegar objeção de consciência, é preciso ter outro médico no local para atender esses casos.

Mas esse comportamento não é algo presente só na saúde. Nas delegacias também encontramos resistência. Tivemos o caso de uma menina, de 12 anos, estuprada por um tio. Essa criança passou pelo atendimento no HMIB e em determinado momento os policiais a chamaram para voltar lá. Na presença da mãe, o delegado pegou na mão da vítima e falou: “Nós vamos fazer um pacto. Você vai voltar lá no hospital, dizer que não vai interromper a gravidez e, quando o bebê nascer, vai mandar para mim. Vou criá-lo”. A família veio nos procurar e estavam todos muito mal. A criança acreditava estar fazendo algo de ruim.

Fizemos um trabalho psicológico para mostrar como ela estava apenas exercendo um direito. Não era ilegal, não era errado e estávamos todos ali para realizar o desejo dela. Enfim, esse delegado interrompeu um tratamento que estava sendo feito com essa criança. Precisamos rever e reforçar o atendimento por causa dele.

Qual seria a explicação dessa resistência da comunidade médica sobre o assunto? Acredita que uma mudança no currículo das faculdades de saúde faria alguma diferença na forma como o aborto é tratado?
Primeiro, vivemos em uma sociedade machista. Temos dificuldade em lidar com os direitos das mulheres e com a liberdade delas de fazerem o que quiser com o corpo. Quando uma mulher engravida devido a um estupro, as pessoas estão muito preocupadas com o bebê, mas a vida da mulher também é importante.

Outra questão relevante: os médicos não têm formação para lidar com isso. O tema não é discutido na academia e nem nas residências médicas. Estamos tentando modificar isso aqui no DF. No Hospital de Clínicas de Curitiba, os residentes fazem um curso para aprender como atender vítimas de violência sexual. Isso muda a formação do médico. Queremos implementar aqui.

Por último, a maioria não sabe o que fazer com a mulher que vai passar pelo aborto e nem com a vítima de um abuso sexual.

Qual seria uma solução para o tema?
Não deveríamos focar somente no aborto, mas no estudo da igualdade de gênero. É preciso educar os homens e colocar fim na violência contra as mulheres. Vemos hoje um levante feminino e isso não pode parar. Para mim, essa mulher de 54 anos que sofreu uma tentativa de estupro, na 408 sul, ficou como um grande símbolo disso. Ela levou um tiro no peito porque reagiu à tentativa de estupro. É uma metáfora importante do movimento feminista. Não toleramos mais assédio, piadas inadequadas, a invasão dos seus corpos e precisamos falar isso nas escolas, nas universidades. Temos um número considerável de meninas chegando ao HRAN, após serem dopadas e estupradas em festas universitárias. Precisamos falar sobre isso, não só do aborto.

Você é a favor da legalização do aborto no Brasil em qualquer situação? Acha que isso influenciaria no número de casos de aborto?
Sou a favor da lei. Defendo o direito das mulheres. Mas a questão da legalização do aborto é tão polêmica que, se a gente começa a discutir sobre ela, deixamos de falar sobre as vítimas de violência sexual. Meu objetivo é ajudar as grávidas vítimas de estupro a chegarem aqui. A lei existe para isso e temos de cuidar para que não haja um retrocesso.

Estudos sobre o processo de legalização do aborto mostram: não houve aumento nos casos de aborto nos países onde já é liberado. França, Uruguai e Portugal são bons exemplos. Na verdade, diminuímos as mortes de mulheres que tentam abortos ilegais. No Brasil, as pretas e pobres são as maiores vítimas. Porque elas tentam realizar o procedimento de forma inadequada, em condições de higiene precárias e clínicas ruins. Todos os estudos mostram isso, não sou eu falando.

Vivemos uma outra questão também. Nosso país está discutindo se podemos ou não ter educação sexual nas escolas. Se a gente não discute sobre o homem entender o “não” e quais são os limites dele, veremos cada vez mais o aumento da violência contra a mulher. Recebemos aqui várias meninas grávidas de uma violência cometida após um “boa noite, Cinderela”, em um barzinho bem frequentado de Águas Claras ou da Asa Sul. Não estamos falando de pessoas sociopatas, estamos falando de uma sociedade mal-educada.

Atendem mulheres que chegam após uma tentativa de aborto ilegal? Como é o procedimento?
Essas pacientes não chegam dizendo: “Fiz um aborto ilegal e estou aqui para fazer a finalização do processo”. Elas podem ser presas e sabem disso. Geralmente, nós a recebemos com sangramento intenso ou com algum tipo de dor. São atendidas como qualquer pessoa e oferecemos todo o atendimento médico possível. Muito difícil algum profissional abordar a situação de forma direta com a paciente.

 

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