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 Olavo de Carvalho

Entre as causas do banditismo carioca, há uma que todo o mundo conhece mas que jamais é mencionada, porque se tornou tabu: há sessenta anos os nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da malandragem, do vício e do crime. Como isto poderia deixar de contribuir, ao menos a longo prazo, para criar uma atmosfera favorável à propagação do banditismo?

De Capitães da Areia até a novela Guerra sem Fim, passando pelas obras de Amando Fontes, Marques Rebelo, João Antônio, Lêdo Ivo, pelo teatro de Nelson Rodrigues e Chico Buarque, pelos filmes de Roberto Farias, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Rogério Sganzerla e não-sei-mais-quantos, a palavra-de-ordem é uma só, repetida em coro de geração em geração: ladrões e assassinos são essencialmente bons ou pelo menos neutros, a polícia e as classes superiores a que ela serve são essencialmente más (1).

Não conheço um único bom livro brasileiro no qual a polícia tenha razão, no qual se exaltem as virtudes da classe média ordeira e pacata, no qual ladrões e assassinos sejam apresentados como homens piores do que os outros, sob qualquer aspecto que seja. Mesmo um artista superior como Graciliano Ramos não fugiu ao lugar-comum: Luís da Silva, em Angústia, o mais patológico e feio dos criminosos da nossa literatura, acaba sendo mais simpático do que sua vítima, o gordo, satisfeito e rico Julião Tavares — culpado do crime de ser gordo, satisfeito e rico. Na perspectiva de Graciliano, o único erro de Luís da Silva é seu isolamento, é agir por conta própria num acesso impotente de desespero pequeno-burguês: se ele tivesse enforcado todos os burgueses em vez de um só, seria um herói. O homicídio, em si, é justo: mau foi cometê-lo em pequena escala.

Humanizar a imagem do delinqüente, deformar, caricaturar até os limites do grotesco e da animalidade o cidadão de classe média e alta, ou mesmo o homem pobre quando religioso e cumpridor dos seus deveres — que neste caso aparece como conformista desprezível e virtual traidor da classe —, eis o mandamento que uma parcela significativa dos nossos artistas tem seguido fielmente, e a que um exército de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos dá discretamente, na retaguarda, um simulacro de respaldo “científico”.

À luz da “ética” daí resultante, não existe mal no mundo senão a “moral conservadora”. Que é um assalto, um estupro, um homicídio, perto da maldade satânica que se oculta no coração de um pai de família que, educando seus filhos no respeito à lei e à ordem, ajuda a manter o status quo? O banditismo é em suma, nessa cultura, ou o reflexo passivo e inocente de uma sociedade injusta, ou a expressão ativa de uma revolta popular fundamentalmente justa. Pouco importa que o homicídio e o assalto sejam atos intencionais, que a manutenção da ordem injusta não esteja nem de longe nos cálculos do pai de família e só resulte como somatória indesejada de milhões de ações e omissões automatizadas da massa anônima. A conexão universalmente admitida entre intenção e culpa está revogada entre nós por um atavismo marxista erigido em lei: pelo critério “ético” da nossa intelectualidade, um homem é menos culpado pelos seus atos pessoais que pelos da classe a que pertence (2). Isso falseia toda a escala de valores no julgamento dos crimes. Quando um habitante da favela comete um crime de morte, deve ser tratado com clemência, porque pertence à classe dos inocentes. Quando um diretor de empresa sonega impostos, deve ser punido com rigor, porque pertence à classe culpada. Os mesmos que pedem cadeia para deputados corruptos fazem campanha pela libertação do chefe do Comando Vermelho. Os mesmos que sempre se opuseram vigorosamente à pena de morte para autores de homicídios citam como exemplar a lei chinesa que manda fuzilar os corruptos, e repreendem o deputado Amaral Netto, um apologista da pena de morte para os assassinos, por ser contrário à mesma penalidade para os crimes de “colarinho branco”. O Congresso, ocupado em castigar vulgares estelionatários de gabinete, mostra uma soberana indiferença ante o banditismo armado. Assim nossa opinião pública passa por uma reeducação, que terminará por persuadi-la de que desviar dinheiro do Estado é mais grave do que atentar contra a vida humana — princípio que, consagrado no Código Penal soviético, punia o homicídio com dez anos de cadeia, e com pena de morte os crimes contra a administração: dize-me quem imitas e eu te direi quem és (3).

Se levada mais fundo ainda, essa “revolução cultural” acabará por perverter todo o senso moral da população, instaurando a crença de que o dever de ser bom e justo incumbe primeira e essencialmente à sociedade, e só secundariamente aos indivíduos. Muitos intelectuais brasileiros tomam como um dogma infalível esse preceito monstruoso, que resulta em abolir todos os deveres da consciência moral individual até o dia em que seja finalmente instaurada sobre a Terra a “sociedade justa” — um ideal que, se não fosse utópico e fantasista em si, seria ao menos inviabilizado pela prática do mesmo preceito, tornando os homens cada vez mais injustos e maus quanto mais apostassem na futura sociedade justa e boa (4). Um dos maiores pensadores éticos do nosso século, o teólogo protestante Reinhold Niebuhr, mostrou que, ao longo da História, o padrão moral das sociedades — e principalmente dos Estados — foi sempre muito inferior ao dos indivíduos concretos. Uma sociedade, qualquer sociedade, pode permitir-se atos que num indivíduo seriam considerados imorais ou criminosos. Por isto mesmo, a essência do esforço moral, segundo Niebuhr, consiste em tentar ser justo numa sociedade injusta (5). Nossos intelectuais inverteram essa fórmula, dissolvendo todo o senso de responsabilidade pessoal na poção mágica da “responsabilidade social”. Alguns consideram mesmo que isto é muito cristão, esquecendo que Cristo, se pensasse como eles, adiaria a cura dos leprosos, a multiplicação dos pães e o sacrifício do Calvário para depois do advento da “sociedade justa”.

É absolutamente impossível que a disseminação de tantas idéias falsas não crie uma atmosfera propícia a fomentar o banditismo e a legitimar a omissão das autoridades. O governante eleito por um partido de esquerda, por exemplo, não tem como deixar de ficar paralisado por uma dupla lealdade, de um lado à ordem pública que professou defender, de outro à causa da revolução com a qual seu coração se comprometeu desde a juventude, e para a qual a desordem é uma condição imprescindível. A omissão quase cúmplice de um Brizola ou de um Nilo Batista — homens que não têm vocação para tomar parte ativa na produção cultural, mas que têm instrução bastante para não escapar da influência da cultura produzida — não é senão o reflexo de um conjunto de valores, ou contravalores, que a nossa classe letrada consagrou como leis, e que vêm moldando as cabeças dos brasileiros há muitas décadas. Se o apoio a medidas de força contra o crime vem sempre das camadas mais baixas, não é só porque são elas as primeiras vítimas dos criminosos, mas porque elas estão fora do raio de influência da cultura letrada. Da classe média para cima, a aquisição de cultura superior é identificada com a adesão aos preconceitos consagrados da intelligentzia nacional, entre os quais o ódio à polícia e a simpatia pelo banditismo.

Seria plausível supor que esses preconceitos surgiram como reação à ditadura militar. Mas, na verdade, são anteriores. A imagem do crime na nossa cultura compõe-se em última análise de um conjunto de cacoetes e lugares-comuns cuja origem primeira está na instrução transmitida pelo Comintern em 24 de abril de 1933 ao Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, para que procurasse assumir a liderança de quadrilhas de bandidos, imprimindo um caráter de “luta de classes” ao seu conflito com a lei (6).

A instrução foi atendida com presteza pela intelectualidade comunista, que produziu para esse propósito uma infinidade de livros, artigos, teses e discursos. Os escritores comunistas não eram muitos, mas eram os mais ativos: tomando de assalto os órgãos de representação dos intelectuais e artistas (7), elevaram sua voz acima de todas as outras e, logo, suas idéias prevaleceram ao ponto de ocupar todo o espaço mental do público letrado. Hoje vemos como foi profunda a marca deixada pela propaganda comunista na consciência dos nossos intelectuais: nenhum deles abre a boca sobre o problema da criminalidade carioca, que não seja para repetir os velhos lugares-comuns sobre a miséria, sobre os ricos malvados, e para lançar na “elite” a culpa por todos os assaltos, homicídios e estupros cometidos pelos habitantes das favelas.

Ninguém ousa por em dúvida a veracidade das premissas em que se assentam tais raciocínios — o que prova o quanto elas fizeram a cabeça da nossa intelectualidade, o quanto esta, sem mesmo saber a origem de suas idéias, continua repetindo e obedecendo, por mero automatismo, por mera preguiça mental, os chavões que o Comintern mandou espalhar na década de 30.

De nada adianta a experiência universal ensinar-nos que a conexão entre miséria e criminalidade é tênue e incerta; que há milhares de causas para o crime, que mesmo a prosperidade de um wellfare State não elimina; que entre essas causas está a anomia, a ausência de regras morais explícitas e comuns a toda a sociedade; que uma cultura de “subversão de todos os valores” e a glamurização do banditismo pela elite letrada ajudam a remover os últimos escrúpulos que ainda detêm milhares de jovens prestes a saltar no abismo da criminalidade. Contrariando as lições da História, da ciência e do bom senso, nossos intelectuais continuam presos à lenda que faz do criminoso o cobrador de uma dívida social. Alguns crêem mesmo nela, com uma espécie de masoquismo patético, resíduo de uma sentimentalidade doentia inoculada pelo discurso comunista nas almas frágeis dos “burgueses progressistas”: o escritor Antônio Callado, vendo sua casa arrombada, levados seus quadros preciosos, repetia para si, entre inerme e atônito, a sentença de Proudhon: “A propriedade é um roubo”. Deveria recitar, isto sim, o poema de Heine, em que um homem que dorme é atormentado em sonhos por uma figura que, ameaçando-o com uma arma, lhe diz: “Eu sou a ação dos teus pensamentos” (8).

Infelizmente, os pensamentos dos intelectuais não voltam só contra seus autores os seus efeitos materiais. Erigida em crença comum, a lenda do “Cobrador” — título de um conto aliás memorável de Rubem Fonseca — produz devastadoras conseqüências reais sobre toda a população. Ela transforma o delinqüente, de acusado, em acusador. Seguro de si, fortalecido em sua auto-estima pelas lisonjas da intelligentzia, o assassino então já não aponta contra nós apenas o cano de uma arma, mas o dedo da justiça; de uma estranha justiça, que lança sobre a vítima as culpas pelos erros de uma entidade abstrata — “o sistema”, “a sociedade injusta” —, ao mesmo tempo que isenta o criminoso de quase toda a responsabilidade por seus atos pessoais. Perseguida de um lado pelas gangues de bandidos, acuada de outro pelo discurso dos letrados, a população cai no mais abjeto desfibramento moral e já não ousa expressar sua revolta. Qual uma mulher estuprada, envergonha-se de seus sofrimento e absorve em si as culpas de seu agressor. Ela pode ainda exigir providências da autoridade, mas o faz numa voz débil e sem convicção — e cerca seu pedido de tantas precauções, que a autoridade, após ouvi-la, mais temerá agir do que omitir-se. Afinal, é menos arriscado politicamente desagradar uma multidão de vítimas que gemem em segredo do que um punhado de intelectuais que vociferam em público.

Os intelectuais, neste país, são os primeiros a denunciar a imoralidade, os primeiros a subir ao palanque para discursar em nome da “ética”. Mas a ética consiste basicamente em cada um responsabilizar-se por seus próprios atos. E nunca vi um intelectual brasileiro, muito menos um de esquerda, fazer um exame de consciência e perguntar-se: “Será que nós também não temos colaborado para a tragédia carioca?”

Não, nenhum deles sente a menor dor na consciência ao ver que sessenta anos de apologia literária do crime de repente se materializaram nas ruas, que as imagens adquiriram vida, que as palavras viraram atos, que os personagens saltaram do palco para a realidade e estão roubando, matando, estuprando com a boa consciência de serem “heróis populares”, de estarem “lutando contra a injustiça” com as técnicas de combate que aprenderam na Ilha Grande. Os intelectuais literalmente não sentem ter colaborado em nada para esse resultado. Não o sentem, porque décadas de falsa consciência alimentada pela retórica marxista os imunizaram contra quaisquer protestos da consciência moral. Eles possuem a arte dialética de sufocar a voz interior mediante argumentos de oportunidade histórica. Ademais, detestam o sentimento de culpa — que supõem ter sido inventado pela Igreja Católica para manter as massas sob rédea curta. Não desejando, portanto, assumir suas próprias culpas, exorcizam-nas projetando-as sobre os outros, e tornam-se, por uma sintomatologia histérica bem conhecida, acusadores públicos, porta-vozes de um moralismo ressentido e vingativo. Imbuídos da convicção dogmática de que a culpa é sempre dos outros, eles estão puros de coração e prontos para o cumprimento do dever. Qual dever? O único que conhecem, aquele que constitui, no seu entender, a missão precípua do intelectual: denunciar. Denunciar os outros, naturalmente. E aquele que denuncia, estando, por isto mesmo, ao lado das “forças progressistas”, fica automaticamente isento de prestar satisfações à “moral abstrata” da burguesia, a qual, sem nada compreender da dialética histórica, continua a proclamar que há atos intrinsecamente maus, independentemente das condições sociais e políticas: “moral hipócrita”, ante a qual — pfui! — o intelectual franze o nariz com a infinita superioridade de quem conhece a teleologia da história e já superou — ou melhor, aufhebt jetzt — na dialética do devir o falso conflito entre o bem e o mal…

Mas a colaboração desses senhores dialéticos para o crescimento da criminalidade no Rio foi bem mais longe do que a simples preparação psicológica por meio da literatura, do teatro e do cinema: foram exemplares da sua espécie que, no presídio da Ilha Grande, ensinaram aos futuros chefes do Comando Vermelho a estratégia e as táticas de guerrilha que o transformaram numa organização paramilitar, capaz de representar ameaça para a segurança nacional. Pouco importa que, ao fazerem isso, os militantes presos tivessem em vista a futura integração dos bandidos na estratégia revolucionária, ou que, agindo às tontas, simplesmente desejassem uma vingança suicida contra a ditadura que os derrotara: o que importa é que, ensinando guerrilha aos bandidos, agiram de maneira coerente com os ensinamentos de Marcuse e Hobsbawn — então muito influentes nas nossas esquerdas —, os quais, até mesmo contrariando o velho Marx, exaltavam o potencial revolucionário do Lumpenproletariat.

Nenhum desses servidores da História sente o menor remorso, a menor perturbação da consciência, ao ver que suas lições foram aprendidas, que suas teorias viraram prática, que sua ciência da revolução armou o braço que hoje aterroriza com assaltos e homicídios a população carioca. Não: eles nada fizeram senão acelerar a dialética histórica — e não existe mal senão em opor-se à História. Com a consciência mais limpa deste mundo, eles continuam a culpar os outros: o capitalismo, a política econômica do governo, a polícia, e a verberar como “reacionários” e “fascistas” os cidadãos, ricos e pobres, que querem ver os assassinos e traficantes na cadeia.

Mas os intelectuais da esquerda não se limitaram a criar o pano de fundo cultural propício e a elevar pelos ensinamentos técnicos o nível de periculosidade do banditismo; eles deram um passo além, e colheram os frutos políticos do longo namoro com a delinqüência: o apoio dos bicheiros — o que é o mesmo que dizer: dos traficantes — foi a principal base de sustentação popular sobre a qual se ergueu no Rio o império do brizolismo, a ala mais tradicional e populista da esquerda brasileira.

Sob a égide do brizolismo, as relações entre intelectualidade esquerdista e banditismo transformaram-se num descarado affaire amoroso, com a ABI dando respaldo à promoção do livro Um contra Mil, em que o quadrilheiro William Lima da Silva, o “Professor”, líder do Comando Vermelho, faz a apologia do crime como reação legítima contra a “sociedade injusta”.

Um pouco mais tarde, quando a criminalidade organizada já estava bem crescida a ponto de requerer uma intervenção do governo federal, o que se verificou foi que a esquerda não se limitara a colaborar com os bandidos, mas se ocupara também de debilitar seus perseguidores; que a CUT e o PT, infiltrando-se na Polícia Federal, haviam tornado esta organização mais ameaçadora para o governo federal do que para traficantes e quadrilheiros (9).

E finalmente, quando o governo federal, vencendo resistências prodigiosas, finalmente se decide a agir e incumbe o Exército de dirigir a repressão ao banditismo no Rio, a intelectualidade de esquerda, como não poderia deixar de ser, inicia uma campanha surda de desmoralização do comando militar das operações, seja com advertências alarmistas quanto à possibilidade de “abusos” contra os moradores das favelas, seja com toda sorte de gracejos e especulações sobre as fragilidades da estratégia adotada, seja com argumentações pseudocientíficas sobre a inconveniência do remédio adotado, dando a entender que os riscos de uma intervenção militar são infinitamente maiores que o da anarquia sangrenta instalada no Rio. Tudo isto prepara o terreno para uma investida maior, em que entidades autonomeadas representantes da “sociedade civil” — as mesmas que promoveram a elevação dos chefes do Comando Vermelho ao estatuto de “lideranças populares” — se unirão para pedir a retirada das Forças Armadas e a devolução dos morros a seus eternos governantes, lá entronizados pelas graças da deusa História (10).

Resumindo, pela ordem cronológica: a esquerda, primeiro, criou uma atmosfera de idealização do banditismo; segundo, ensinou aos criminosos as técnicas e a estratégia da guerrilha urbana; terceiro, defendeu abertamente o poder das quadrilhas, propondo sua legitimação como “lideranças populares”; quarto, enfraqueceu a Polícia Federal como órgão repressivo, fortalecendo-a, ao mesmo tempo, como instrumento de agitação; quinto, procurou boicotar psicologicamente a operação repressiva montada pelas Forças Armadas, tentando atrair para ela a antipatia popular. Não é humanamente concebível que tudo isso seja apenas uma sucessão de coincidências fortuitas. Se a continuidade perfeitamente lógica das iniciativas da esquerda em favor do banditismo não reflete a unidade de uma estratégia consciente, ela expressa ao menos a unanimidade de um estado de espírito, a fortíssima coesão de um nó de preconceitos contra a ordem pública e a favor da delinqüência. Para a nossa esquerda, decididamente, assassinos, ladrões, traficantes e estupradores estão alinhados com as “forças progressistas” e destinados a ser redimidos pela História pela sua colaboração à causa do socialismo. Quanto a seus perseguidores, identificam-se claramente com as “forças reacionárias” e irão direto para a lata de lixo da História. No que diz respeito às vítimas, enfim, pode-se lamentá-las, mas, como dizia tio Vladimir, quê fazer? Não se pode fritar uma omelette sem quebrar os ovos…

Para completar, é mais que sabido que artistas e intelectuais são um dos mais ricos mercados consumidores de tóxicos e que não desejam perder seus fornecedores: quando defendem a descriminalização dos tóxicos, advogam em causa própria. Mas eles não são apenas consumidores: são propagandistas. Quem tem um pouco de memória há de lembrar que neste país a moda das drogas, na década de 60, não começou nas classes baixas, mas nas universidades, nos grupos de teatro, nos círculos de psicólogos, rodeada do prestígio de um vício elegante e iluminador. Foi graças a esse embelezamento artificial empreendido pela intelligentzia que o consumo de drogas deixou de ser um hábito restrito a pequenos círculos de delinqüentes para se alastrar como metástases de um câncer por toda a sociedade: Si monumentum requires, circumspicii.

É de espantar que nessas condições o banditismo crescesse como cresceu? É de espantar que, enquanto a população maciçamente clama por uma intervenção da autoridade e aplaude agora a chegada dos fuzileiros aos morros, a intelectualidade procure depreciar a atuação do Exército e não se preocupe senão com a salvaguarda dos direitos civis dos eventuais suspeitos a serem detidos, como se a eliminação do banditismo armado não valesse o risco de alguns abusos esporádicos?

O que seria de espantar é que os estudos pretensamente científicos sobre as causas do banditismo jamais assinalem entre elas a cumplicidade dos intelectuais, como se os fatores econômicos agissem por si e como se a produção cultural não exercesse sobre a ordem ou desordem social a menor influência, mesmo quando essa cumplicidade passa das palavras à ação e se torna um respaldo político ostensivo para a ação dos quadrilheiros. Seria de espantar, digo, se não se soubesse quem são os autores de tais estudos e as entidades que os financiam.

Há décadas nossa intelligentzia vive de ficções que alimentam seus ódios e rancores e a impedem de enxergar a realidade. Ao mesmo tempo, ela queixa-se de seu isolamento e sonha com a utopia de um amplo auditório popular. Mas é a incultura do nosso povo que o protege da contaminação da burrice intelectualizada. “Incultura” é um modo de falar: será incultura, de fato, privar-se de consumir falsos valores e slogans mentirosos? Não: mas quando houver neste país uma intelectualidade à altura de sua missão, ela será ouvida e compreendida. Por enquanto, se queremos ver o nosso Rio livre do flagelo do banditismo, a primeira coisa a fazer é não dar ouvidos àqueles que, por terem colaborado ativamente para a disseminação desse mal, por mostrarem em seguida uma total incapacidade de arrepender-se de seu erro, e finalmente por terem o descaramento de ainda pretender posar de conselheiros e salvadores, perderam qualquer vestígio de autoridade e puseram à mostra a sua lamentável feiúra moral.

OLAVO DE CARVALHO é filósofo e escritor. 

NOTAS

(1) Os rappers presos em São Paulo no dia 27 de novembro por incitação à violência cantavam: “Não confio na polícia, raça do caralho.” É a culminação de seis décadas de cultura antipolicial, que teve outro momento memorável com “Chame o ladrão” de Chico Buarque. Mas depois que Gabriel o Pensador foi aplaudido pela intelligentzia ao expressar “artisticamente” seu desejo de matar um Presidente da República, que mais se pode esperar? Segundo o ex-procurador da República, Saulo Ramos, não há crime de incitação à violência “em obras artísticas”. Mas será que faz sentido exigir bons serviços, honradez e patriotismo de uma classe profissional cuja detração constante e sistemática já foi incorporada à cultura nacional, sob a proteção do Estado? Não constituirá isso discriminação atentatória de um direito fundamental, numa clara violação do Art. 5º, § XLI da Constituição Federal? Se a letra do rap não tipifica o crime de incitação à violência, ela é uma clara apologia do preconceito. Por que não haverá crime em chamar de “raça do caralho” toda uma categoria profissional, se é crime usar o mesmo epíteto contra judeus ou negros? Será o elo racial mais sacrossanto ou digno de proteção oficial do que a comunidade de profissão, mesmo quando se trate de uma categoria de servidores do Estado? Outra coisa: qualquer porcaria posta em música é “obra artística”? Quem conhece a natureza antes publicitária e comercial do que artística de pelo menos oitenta por cento da música popular entende que o termo “arte” tem servido apenas como um salvo-conduto para a prática do crime. O povo, em todo caso, já julgou os rappers: apedrejou-os.

(2) A perda do senso da conexão entre intenção e culpa é um grave sintoma de patologia da personalidade. Não obstante, vi pela TV Record ( programa 25ª Hora de 28 de novembro ) a deputada Irede Cardoso defender a legalização do aborto sob o argumento de que, quando ocorrido por causas naturais, ele não é crime; sendo portanto, na opinião de S. Excia., uma odiosa discriminação puni-lo só quando é realizado por livre vontade da mulher ¾ um raciocínio que, embora S. Excia. não perceba, se aplica ipsis litteris à morte de modo geral. Considero realmente grave que haja pessoas dispostas a polemizar a sério com alguém capaz de dizer uma coisa dessas, que só pode ser respondida com uma forte dose de triperidol.

(3) Decorrido um ano desde a publicação deste artigo, vejo que ele inibiu um pouco a apologia do banditismo, mas não eliminou de todo os preconceitos em que ela se fundamenta. Numa entrevista nas páginas amarelas de Veja em novembro de 1995, o delegado Hélio Luz, um sujeito que está a léguas de qualquer cumplicidade consciente com alguma coisa ilícita, cai numa escandalosa contradição ao descrever a situação presente do Rio de Janeiro, precisamente porque sua visão é distorcida pelo viés de um preconceito de classe. De um lado, ele afirma que o maior problema da polícia carioca é que os bandidos têm armas melhores e em maior quantidade que os policiais; de outro, que a prioridade no combate ao crime não é o confronto direto com as quadrilhas armadas, mas a investigação dos figurões, dos homens da classe alta que financiam o crime organizado. Ora, um sujeito com a cabeça cheia de intenções criminosas mas armado apenas de talão de cheques não representa senão um perigo virtual e de longo prazo: para efetivar suas intenções ele tem de contatar, recrutar, equipar e treinar um esquadrão de pés-de-chinelo, o que não se faz em dois dias, e, para complicar as coisas, tem de fazer tudo isso por vias indiretas, por interpostas pessoas, para manter oculta sua respeitável identidade. Quem está nas ruas assaltando e matando, quem representa o perigo imediato para a população, são pés-de-chinelo armados de granadas e metralhadoras, e não os colarinhos-brancos que os contrataram dez ou doze anos atrás. Em segundo lugar, é absolutamente impossível que quadrilhas a soldo de algum ricaço não tenham, depois de tanto tempo de exercício profissional, adquirido autonomia financeira para dispensar seus antigos patrões e operar por conta própria. Terceiro, se a polícia prende um colarinho-branco, os pés-de-chinelo que trabalhavam para ele vão imediatamente pedir emprego a outro empresário do crime — exatamente como os esbirros da Máfia trocavam de famiglia em caso de morte ou prisão do seu capo — ou então estabelecem-se por conta própria, de modo que, saneadas as classes altas, a vida do povão das ruas continuará um inferno. Há em todo o raciocínio do delegado Luz a típica confusão do homem de formação marxista entre causas e fatos, entre as raízes sociais do crime e o crime como tal. Baseado nessa confusão, ele crê que a missão precípua da autoridade é eliminar as causas remotas do crime, e não combater a criminalidade de facto. Ora, pergunto eu: se um cachorro feroz investe de dentes à mostra contra o delegado Luz, qual a reação que ele considera mais urgente nesse instante: dominar o cão ou multar o proprietário? E se as ruas estão infestadas de cães raivosos, que diremos de uma polícia que em vez de amarrá-los vai primeiro investigar quem são seus donos? O banditismo não é uma estrutura, uma instituição monárquica em que, cortada a cabeça, o corpo inteiro venha abaixo: é um ser caótico e proteiforme, capaz de reorganizar-se instantaneamente de milhões de maneiras diferentes, por milhões de artifícios imprevistos; logo, é utópico pretender liquidá-lo em bloco, atacando-se somente os centros de comando: ele tem de ser combatido no varejo, bandido por bandido, rua por rua, bala por bala. Aqui ocorre exatamente como em certas doenças que, uma vez instaladas, já não se pode atacar suas causas profundas antes de eliminar seus efeitos e sintomas mais imediatos e perigosos. O médico que, diante do doente diarréico por má alimentação, tratasse de remover primeiro as causas, alimentando o doente antes de suprimir o sintoma imediato, obteria um único resultado seguro: a morte do paciente. — De outro lado, é somente a demagogia mais estúpida que pode pretender eliminar o banditismo mediante passeatas e protestos, como se assaltantes e sequestradores fossem colarinhos-brancos ciosos de sua imagem respeitável. Tudo isso revela uma recusa obstinada de enfocar o problema do banditismo no plano em que ele se coloca — que é obviamente de ordem policial-militar — e um desejo obsessivo de encará-lo pelo viés político, um terreno onde nossa intelectualidade se sente mais segura mas que está longe daquele onde o problema reside.

(4) A maldade que se legitima sob a alegação de lutar por uma sociedade justa é a essência mesma da moral socialista. Quem quiser saber mais a respeito, leia Os Demônios de Dostoiévski, que descobriu a natureza dessa perversão quando ela estava ainda em germe.

(5) V. Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society. A Study in Ethics and Politics, New York, Scribner’s, 1960 ( 1st. ;ed., 1932 ).

(6) Cf. documento citado em William Waack, Camaradas. Nos Arquivos de Moscou. História Secreta da Revolução Brasileira de 1935, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, pp. 55-56.

(7) Um episódio célebre dessa epopéia teve como herói o poeta Carlos Drummond de Andrade, secretário do Congresso Nacional de Escritores, que teve de defender a pontapés as atas do encontro para que não fossem roubadas pelos comunistas interessados em falsificar o resultado das eleições para a ABDE.

(8) O escritor Antônio Callado, ao ler estas linhas, teve um acesso de cólera e escreveu ao JB protestando contra a publicação do meu artigo, no qual apontava três pecados infames: 1º, ser assinado por um ilustre desconhecido; 2º, errar na qualificação dos objetos roubados, que na verdade não eram quadros, mas instrumentos óticos sem grande valor; 3º, não entender o sentido irônico da citação de Proudhon. Saltando sobre a primeira acusação, que era tola demais, respondi que: 1º, os objetos roubados poderiam ter sido meias, ou tacos de bilhar, que não faria a menor diferença para o meu argumento; 2º, a ironia, se alguma houvera, fora antes involuntária. Callado, vendo desmascarada a ambiguidade de sua atitude ante a violência carioca, e não tendo o que opor aos meus argumentos, se apegara a detalhes bobos no intuito de me desmoralizar. — Passados alguns dias, a colunista Joyce Pascowitch, na Folha de S. Paulo, informava que, do alto de seu chateau-sur-mer numa praia baiana, Caetano Veloso estava “indignado” com minhas acusações à intelectualidade — como se espumar de raiva fosse uma refutação. O Globo, por sua vez, trazia uma declaração do antropólogo Gilberto Velho, que condenava sumariamente o meu artigo ( dispensando-se de alegar alguma razão para tanto, talvez por julgar que sua opinião é auto-probante ), e aproveitava para falar mal do meu livro Uma Filosofia Aristotélica da Cultura, que, surpreendentemente, admitia não ter lido. A completa irracionalidade destas três reações é a melhor comprovação de que a tese d’O Imbecil Coletivo, lamentavelmente, está certa: algo no cérebro nacional não vai bem.

(9) “A Polícia Federal perdeu todo o seu potencial de atuação. O contrabando liberou geral em todas as fronteiras. Milhares de inquéritos prescrevem nas delegacias da PF, por descaso e falta de pessoal, aumentando a impunidade.” O quadro, delineado pelo Prof. Paulo Sérgio Pinheiro ( “Crime e Governabilidade”, Jornal do Brasil, 14 nov. 1994 ) é perfeitamente exato. Mas, se o professor diz a verdade genérica, oculta a específica. A decadência da Polícia Federal coincide com a sua infiltração maciça por agentes do PT e da CUT, que transformaram esse órgão repressivo numa máquina de agitação incapaz de cumprir seus deveres legais mas capaz de intimidar o governo com greves, passeatas, badernas, ameaças e rojões disparados contra as vidraças dos ministérios. Armando a Polícia Federal contra as autoridades, a agitação petista desarma-a, ipso facto, contra o banditismo. Como não convém dizer isto, o professor acusa genericamente “o governo” por um descalabro policial do qual o governo é, na verdade, a vítima. Não é de hoje que a esquerda recorre ao expediente de provocar a desordem para em seguida acusar o governo de não manter a ordem.

Jogar sobre “o governo” as culpas da esquerda parece ser de fato a estratégia mental do professor:

“O crime organizado e as quadrilhas puderam assumir o controle de muitos espaços somente com o assentimento de vários escalões do poder público. Os governos estaduais não desarmam as quadrilhas porque não convém aos interesses de vários grupos incrustados dentro do aparelho de Estado ou em grupos sociais que lhes dão base política.”

O professor não esclarece que grupos são esses. O modo vago e impreciso de falar deixa no ar a impressão de referir-se a algo já sabido e pressuposto, a um lugar-comum. “Grupos incrustados no aparelho de Estado” é uma expressão que designa corriqueiramente os banqueiros, os senhores do capital, os empreiteiros, os políticos de direita que deram apoio à ditadura. Será destes que o professor está falando? Não pode ser. Não existe a menor notícia de uma ligação entre essa gente e os bandidos do morro. Mas os grupos que têm efetivamente essa ligação o professor não pode citar pelos nomes — pois são grupos de esquerda: são os ex-guerrilheiros e algumas velhas lideranças do tempo do janguismo, que após o exílio se refizeram na política com a ajuda dos bandidos e agora continuam “incrustados no aparelho de Estado”. Acusar estes grupos não fica bem: seria dividir as forças da esquerda, coisa que um gentleman como o Prof. Pinheiro jamais se permitiria. Então ele prefere falar vagamente, de modo que, pela automática associação de idéias, a má impressão acabe indo para o lado da direita e da “elite” — que obviamente não inclui a intelligentzia.

O professor não esconde seu intuito de desmoralizar o trabalho das Forças Armadas: “Libertemo-nos da fantasia de coreografias bélicas inúteis.” E oferece, em lugar da fantasia, a solução real, “científica”: “A participação das Forças Armadas deve ser submetida ao comando civil.” Qual comando civil? O do governo estadual que, por omissão e cumplicidade, gerou o atual estado de coisas? Ou o governo federal que, determinando a intervenção das Forças Armadas, já está comandando o processo? Entre o absurdo e a redundância, a proposta do professor permanece indefinida. Indefinida, mas nem tanto. Linhas adiante ele finalmente abre o jogo: “No Rio de Janeiro é impensável pensar em realizar alguma iniciativa consistente sem a participação das entidades que compõem o Viva Rio.” Eis aí o segredo: o comando da luta contra o crime não pode ficar com as Forças Armadas nem com os governantes civis eleitos, estaduais ou federais: tem de ser transferido para as entidades autonomeadas “representantes da sociedade civil” — isto é, em última análise, para a intelligentzia esquerdista. Meu Deus, será que neste país todo mundo só discursa pro domo sua? A mentalidade atávica, que mais teme a hipótese superada do militarismo do que a ameaça real e presente da delinqüência armada, acaba reinterpretando a situação de acordo com a ótica dos interesses de seu próprio grupo, tomados como mais urgentes e importantes do que as necessidades da população: em vez de ajudar na luta de um povo contra o banditismo, vamos desviar nossas energias para o velho conflito entre a intelligentzia e os militares — um episódio já encerrado da História, que o prof. Pinheiro pretende ressuscitar em prejuízo das tarefas de hoje. Olhando o presente com os olhos do passado, ele mostra que está menos interessado na luta contra o crime do que em assegurar, nela, um posto de comando para a casta a que pertence, que ele pressupõe ser mais confiável do que as Forças Armadas ou do que o governo federal eleito. A intelligentzia é a mais corporativista das corporações.

(10)Foi isto realmente o que acabou por acontecer, poucos meses após a publicação deste artigo no Jornal do Brasil.

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